19.01.2022

Virou lama, mas é lar

A luta pelas memórias, tradições e afetos soterrados pelas tragédias de Mariana e Brumadinho
Foto: Jonne Roriz/ Nosso Impacto
Dois indígenas em pé na margem de um rio ao entardecer.

No derradeiro final de semana de um árido inverno de 2020 entre as montanhas de Minas Gerais, Terezinha Custódio Quintão estava com a agenda cheia de afazeres domésticos. Com a previsão de passar os dias de descanso na companhia de dez pessoas, ela e outras três mulheres limpavam o quintal e preparavam a refeição de sábado: linguiça com arroz e farofa. Já no começo da noite, Maria das Graças Quintão, sua irmã, começava a descascar jiló para acompanhar um prato de fígado no almoço do dia seguinte. Enquanto isso, Simaria, outra irmã, e Mônica, filha de Maria das Graças, se ocupavam com o fogão a lenha, recém-instalado na área externa da casa. Uma caixa de som ditava o ritmo no embalo de hits de sertanejo e latas de cerveja gelada estavam já disponíveis para o pessoal que chegaria em breve. Uma cena, enfim, em tudo cotidiana, em tudo similar à de tantas e tantas casas Brasil adentro. A não ser…

Uma mulher em pé diante de uma floresta de noite.
Na vila do Bento Rodrigues, em Mariana, a casa de Terezinha foi destruída pela lama

A não ser pelo cenário de terra arrasada ao redor da casa. Terezinha é uma das ex-moradoras do Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, atingido em cheio pelo rompimento da barragem de Fundão da mineradora Samarco, em 2015. Localizada na parte alta da vila, a casa não foi soterrada pela lama, mas aproveitadores invadiram a região e saquearam tudo que foi deixado para trás – eletrodomésticos, móveis, roupas, dinheiro e até mesmo janelas, portas e telhas das casas que ficaram em pé.

Imagem de mulheres preparando jantar.
Atingidos pelo rompimento da barragem criaram o grupo Loucos por Bento e continuaram a frequentar a vila destruída

Naquele dia 5 de novembro de 2015, a família foi forçada a abandonar a vida como estava acostumada a levar. Passaram a viver de aluguel, pago pela Samarco, em Mariana. Não é a mesma coisa. Acostumada à roça por 49 anos, desde o dia em que nasceu, Terezinha achou a vida na cidade insuportável. A partir do segundo semestre de 2016, o grupo começou a frequentar a vila destruída. “Voltamos para limpar a Igreja das Mercês, que ficou em pé. Vi a minha casa, toda suja, e quis limpar, porque é como eu gosto de deixar a minha casa, sempre limpa”, conta. “Quando a casa ficou arrumada, decidimos voltar mais vezes.”

Imagem de homem analisando carro.
Jeitinho: moradores improvisaram para garantir o mínimo de estrutura durante os finais de semana

Sem serviço de iluminação pública, um transformador costuma ser usado para gerar energia elétrica a partir de uma bateria de caminhão. A família conseguiu adaptar um forno a lenha para cozinhar e o banho é na base do caneco. Em pouco tempo, estava formado o grupo Loucos por Bento, gente que não desistiu de viver – ou pelo menos ocupar – no território em que tem suas raízes. A instabilidade da nova situação ajuda a se agarrar ao passado. Depois de mais de meia década de espera, nenhuma casa do reassentamento foi entregue e muitas vítimas ainda brigam na Justiça por valores mais altos de indenização.

Vista aérea de área industrial em meio a floresta.
Canteiro de obras da nova Bento em 2020: nenhuma casa ficou pronta

Passar o fim de semana no Bento configura o descumprimento de uma ordem judicial. “Não tenho mais nada para perder. O que vão fazer? Levar a gente preso? Nós não vamos mais sair, ninguém pode impedir uma pessoa de entrar na sua casa, naquilo que é seu”, diz Mônica.

Imagem de mulheres conversando em varanda.
Lar doce lar: mesmo com imóveis alugados em Mariana, muitos dos atingidos não se adaptaram à nova realidade

A lama não soterrou apenas a história das famílias que moravam no Bento. Devastou um pedaço da memória nacional. A vila nasceu há cerca de 300 anos e fazia parte da Estrada Real, rota turística de 1 630 quilômetros que passa por Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, aberta quando a Coroa Portuguesa decidiu oficializar os caminhos para o trânsito de ouro e diamantes do estado mineiro até os portos fluminenses.

Além disso, os 43,7 milhões de metros cúbicos de rejeito de extração de minério de ferro contaminaram quase 700 quilômetros do Rio Doce até a sua foz, em Regência, no litoral do Espírito Santo. A destruição ambiental, somada às 19 mortes na tragédia, comoveu o país. Não demorou muito para surgir o lema “Mariana, nunca mais”. E não demorou muito para que também o lema fosse soterrado. Pouco mais de três anos depois, em 25 de janeiro de 2019, rompeu-se a barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, do Complexo Paraopeba, em Brumadinho, a 130 quilômetros dali. A área pertence à mineradora Vale. Em vidas humanas, a tragédia foi 15 vezes pior: morreram 270 pessoas; seis ainda estão desaparecidas.

Para os bombeiros que continuam a realizar as buscas, as vítimas que precisam ser encontradas não são corpos, cadáveres, fragmentos ou resquícios – elas são joias. Pela quantidade de pessoas atingidas e o contato direto com os familiares desesperados, os bombeiros recorreram a uma palavra menos dura, menos mórbida, que fizesse jus àquilo que estavam buscando debaixo de tanto rejeito. Joias.

Vista aérea de uma estrada e uma ponte.
Área atingida pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, três anos após a tragédia em Mariana

Assim como em Mariana, o desastre de Brumadinho deixou um enorme impacto socioambiental, histórico, cultural. O município é a base para quem quer conhecer o Instituto Inhotim, maior museu a céu aberto da América Latina. Entre janeiro a agosto de 2019, no efeito pós-soterramento, o local recebeu um público 40% menor que o usual. A isso se somou a pandemia: em 18 de março de 2020, o Inhotim fechou as portas.

“Temos sido provocados a nos reinventar e a criar formas diferentes de chegar ao público”, diz o diretor-presidente do Instituto, Antônio Grassi. Duas crises em um período de tempo tão curto colocaram em xeque a sobrevivência da instituição. Grassi garante que “a situação financeira do Inhotim continua sólida, com a instituição mantendo um diálogo constante e transparente com nossos patrocinadores, parceiros e apoiadores”.

 

“Não há mais vida como antes”

Se há luta para manter um museu, há luta para não virar um museu. A nove quilômetros do centro de Brumadinho, em São Joaquim de Bicas, a cultura e as tradições milenares da aldeia indígena Naô Xohã, da etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe, estão ameaçadas. A contaminação do rio Paraopeba acabou com rituais típicos dos nativos. A água, considerada sagrada e objeto de cerimônias de agradecimento e devoção, se tornou sinônimo de perigo – os indígenas não se aproximam mais do rio e têm medo até das gotículas que evaporam durante a noite e caem como sereno no solo da terra protegida.

Para o cacique e fundador da aldeia, Arakuã Pataxó Hã-Hã-Hãe, a vida que antes era de subsistência se tornou dependente dos recursos da mineradora. “A gente caçava, pescava, plantava o nosso próprio alimento. Agora, como confiar no animal da mata, que se alimenta do rio, que volta contaminado? Não podemos mais viver como antes”, diz. “O rio está morto. Nós queríamos o rio de volta, mas sabemos que é impossível.”

Um homem com cocar em pé na frente de um grupo de pessoas.
Indígenas Pataxó Hã-Hã-Hãe, da aldeia Naô Xohã, atingidos pelo rompimento da barragem em Brumadinho

Até as danças tradicionais passaram a ser um problema. A coreografia tem passos com pisadas fortes contra o chão, mas a poeira que levanta fica colada ao corpo das pessoas. Os indígenas dizem sofrer com feridas na pele por causa da contaminação do solo. “Queremos a real reparação pela Vale, mas a nossa luta é anterior ao rompimento da barragem e vamos continuar resistindo para termos os nossos direitos como indígenas”, diz o cacique. “Não são dois anos de luta, são 520.”

Parte da dificuldade é o reconhecimento da própria cultura Pataxó. Há períodos em que moradores da aldeia vivem como nômades e viajam pelo país para vender artesanato. Por causa disso, nem todos os habitantes da Naô Xohã foram reconhecidos como atingidos. “Muitos estavam viajando quando a barragem se rompeu e outros foram embora porque não quiseram mais ficar expostos à contaminação. Mesmo assim, eles têm direitos”, afirma Hã-Hã-Hãe.

Uma mulher em pé diante de uma parede com uma luz brilhando sobre ela.
Amanda perdeu a irmã, Natália, e se tornou uma ativista internacional para exigir justiça pelo crime

Também é uma busca por justiça o sentimento que une os familiares dos mortos no desastre. A professora de inglês Amanda Andrade, de 25 anos, perdeu sua irmã, Natália, de 32 anos, que trabalhava como analista administrativa da Vale. No dia da tragédia, Amanda estava trabalhando no Kuwait. Teve que acompanhar à distância, sozinha, o drama de seus pais e de sua outra irmã. Este ano, pouco antes da eclosão da pandemia de covid-19, ela decidiu retornar a Brumadinho para dar apoio à família e, desde o rompimento da barragem, se tornou uma ativista internacional, pedindo compensação pelo crime. Para ela, o pior é ver o sofrimento dos pais. “Dizem que não há dor maior do que perder um filho e é o que eles estão vivendo. Tenho certeza de que a fé foi extremamente importante para que eles conseguissem ficar em pé e seguir em frente”, afirma.

Uma mulher em pé diante de uma casa em ruínas.
Depois de perder o irmão na tragédia de Brumadinho, Paré e seu filho desenvolveram transtornos mentais

Na comunidade do Tejuco, que estava na rota da destruição do rejeito da mina de Córrego do Feijão, Maria Aparecida da Silva Santos, de 52 anos, conhecida como Paré, perdeu o irmão. Ele trabalhava em uma horta quando a barragem estourou. “Comecei a tomar vários remédios e meu filho mais novo, que ajudou nas buscas, desenvolveu hábitos de automutilação. Foram 62 dias de espera para encontrar o corpo do meu irmão”, diz Paré.

A dor e a angústia desse tipo de experiência não se curam. Certamente não com indenizações, ainda que elas fossem enormes. Para Josiane Melo, que perdeu a irmã na tragédia e é presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum), os familiares são vistos como cifrões ambulantes pelas ruas de Brumadinho. “Para nós, que convivemos com a dor do luto, não há valor que compense. Queremos justiça e que as leis de mineração mudem para que ninguém nunca mais tenha que viver o que nós estamos sentindo”, afirma.

Uma cruz em frente a uma encosta.
Memorial às vítimas do rompimento da barragem em Brumadinho

Para quem já havia vivido o soterramento de Mariana, a tragédia de Brumadinho bateu como um eco. Conhecido como Zezinho do Café, José das Graças Caetano, de 67 anos, diz ter se abalado pessoalmente com o caos em Brumadinho. “Minha indignação é ver que a vida do ser humano está abaixo do minério. Se valesse alguma coisa, Brumadinho não teria acontecido depois de três anos. Eu sofri demais com aquilo.”

Uma vista aérea de um lago com uma casa sobre ele.
No Bento Rodrigues, área inundada se tornou refúgio de lazer para os antigos moradores da vila

Assim como os Loucos por Bento, Zezinho frequenta a região atingida desde 2018. A Samarco inundou duas áreas na vila, que se tornaram os diques S3 e S4. A ação fez com que surgisse uma espécie de represa de águas calmas, cheia de peixes. Em uma ilha natural, os netos de Zezinho costumam acampar com barracas, pescar e nadar. “Aqui é nosso. Não me pagaram pelo meu terreno de mais de 2.000 hectares. Temos que ocupar para que a Samarco não roube de vez”, afirma. A poucos metros de distância, na área mais baixa do Bento, onde tudo foi destruído, apenas quem conhece as coordenadas da lama pode dizer que ali é o endereço da maior tragédia socioambiental do Brasil – a vila se tornou um enorme pasto sem cuidados, com mato descontrolado e dejetos de animais. Para quem é cria daquela terra, tanto faz a extensão da sujeira. O lugar de origem é a mina mais valiosa do mundo.

Jornalista especializada em meio ambiente e sustentabilidade e cofundadora do Nosso Impacto

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