A jornada da família de retirantes que fugia da seca do semi-árido brasileiro acompanhada pela cadelinha Baleia – registrada na obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos – serviu de exemplo para que os candidatos à Fuvest 2023, da Universidade de São Paulo (USP), escrevessem, na prova de redação, sobre as migrações forçadas por crises ambientais. Porém, é toda a sociedade que deve refletir (e agir) a respeito dos deslocamentos forçados por desastres ambientais e pelas mudanças climáticas, que afetam grupos sociais mais vulneráveis e causam crises humanitárias.
A questão passou a ser tratada sob a ótica do clima em 2010, na COP16, quando o Marco de Adaptação de Cancún passou a considerar a migração como estratégia de adaptação à mudança climática. O problema é consequência da desigualdade histórica de pessoas racializadas em todo o planeta – que são as que mais sofrem com a emergência climática. Portanto, existe uma falha ao não considerar as desigualdades estruturais, nem fatores culturais, políticos e históricos dessas populações.
O Estado, ao oferecer a uma comunidade uma “solução” de adaptação sem levar em conta que justiça climática está em compreender e visibilizar outras visões de mundo (como as de povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais), poderá cometer outras injustiças, invisibilizar uma cultura e até correr o risco de extingui-la. O Comitê de Direitos da ONU decidiu em favor dos indígenas da ilha do Estreito Torres contra a Austrália pelo país não os ter protegido adequadamente contra os efeitos das mudanças climáticas. A decisão é justificada pelo Comitê porque o país violou o direito dos indígenas de desfrutarem de sua cultura e deverá “proporcionar uma compensação adequada (aos ilhéus) pelos danos que sofreram” e “lançar consultas significativas para realizar uma avaliação das necessidades”.
A falta de mecanismos estabelecidos que também levem em conta a cultura e a identidade dos povos demonstra a situação de invisibilidade e de extrema vulnerabilidade de comunidades que enfrentam os impactos adversos das mudanças climáticas. Este foi o debate levantado no artigo “Migrações climáticas: invisibilidade legal e abandono até quando?”, no qual as pesquisadoras Erika Pires Ramos, Tatiana Mendonça Cardoso e Giovana Gini trazem a história de outra baleia. Especificamente, a comunidade da Enseada da Baleia, na ilha do Cardoso, em São Paulo. O local foi transformado, em 1962, em Parque Estadual da Ilha do Cardoso, e a erosão causada por fortes ressacas do mar destruiu o território onde ficava a enseada.
O modo de vida da população de caiçaras não foi levado em conta quando a região foi convertida em parque e trouxe dificuldades para que aqueles que permaneceram pudessem seguir com a sua identidade, cultura e atividades tradicionais, como agricultura itinerante, pesca artesanal, extrativismo, turismo e artesanato. As alternativas, segundo as acadêmicas, que o Estado e o Município deram foram ou a integração dentro de uma comunidade ou mudar-se para a periferia da cidade mais próxima. Ambas rejeitadas porque a comunidade não queria mudar drasticamente o seu modo tradicional de vida, de sobrevivência e existência.
Além de ser intrínseco ao racismo ambiental, o problema precisa ser solucionado pela ótica da justiça climática e não somente sob o ponto de vista econômico, de segurança e bem-estar. Os refugiados climáticos devem ser ouvidos e estarem nas esferas de decisão para as ações de adaptação que se fazem necessárias. É óbvio, mas o óbvio vem constantemente sendo esquecido.