27.7.2022

A Psiquê e a alma polar

Um dos destinos mais seletos do globo é a Antártica, e estudos relacionados à psicologia humana se debruçam para entender o que motiva cada indivíduo a participar de uma experiência em um ambiente tão distinto

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Escrito por
Paola Barros Delben
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Imagem de um grande glaciar no meio de uma montanha.
Foto:
Jonne Roriz/ Nosso Impacto

A mitologia grega é rica fonte de inspiração e até mesmo de delimitação de inúmeros conceitos da ciência e do cotidiano moderno. O panteão de deuses antigos sempre forneceu o “concreto abstrato” para aquilo que até então ficava restrito ao íntimo de cada um, sem que todos soubessem que poderiam ter suas ideias e sentimentos compartilhados por interpretações e divagações semelhantes. Uma das alegorias da Antiguidade é da personificação da alma na forma da donzela Psiquê. 

Com asas de borboletas, a noção implícita de que a alma passa por fases (nasce, rasteja, transforma-se de um túmulo (casulo) e voa, apaixona-se e sofre) emprestou seu nome para a disciplina da Psicologia, que tem sua origem como formal quando Wilhelm Wundt funda seu Instituto na Alemanha, em 1879. Psiquê não era uma deusa, mas uma princesa que despertou, curiosamente, o amor do deus do amor, Eros, e causou  revolta em sua mãe, Afrodite, pois Psiquê era mais bela que a deusa da beleza. Estamos falando de uma mera mortal, uma alma que, residindo em cada pessoa, continua sendo um mistério a ser desvendado – inclusive para quem a possui –, pois busca experimentar a vida e tenta superar os desafios impostos. E se as pessoas têm o poder de mudar o mundo, o mundo também tem esse mesmo efeito, ao menos alguns lugares, certamente.

Há quem diga que lugares, aliás, têm alma, uma psique. É notória essa afirmação para navios, por exemplo, e cada estrutura dos gigantes navegáveis, desde as antigas de madeira às mais recentes com materiais tecnológicos fruto da engenharia avançada – e da psique humana em constante evolução –, possuiriam uma alma, algo que torna único um meio de transporte, mesmo que  produzido em série. Eles são “preparados” para determinados contextos, uns mais próprios para suportar ondas gigantes, como do Estreito de Drake – o mais perigoso mar que existe, localizado no encontro entre o Atlântico e o Pacífico – outros destinados a quebrar o gelo que se forma especialmente nos meses mais frios do inverno nas regiões polares e que oferecem evidências da esfericidade da Terra, contrariando argumentos terraplanistas. Da mesma forma, alguns lugares também poderiam ter essa tal chamada alma e provocar mudanças significativas na psique daqueles que a visitam, exigindo mais ou menos para a sobrevivência e o avanço de seres humanos nesses locais, bem como “educando” em uma retroalimentação de conhecimentos sobre sustentabilidade.

Como as pessoas se adaptam ou reagem quando se dirigem aos contextos mais distintos e de difícil acesso desse nosso planeta, que teria como alma Gaia, o espírito da Terra? Um dos destinos mais seletos do globo é a Antártica, e estudos relacionados à psicologia humana se debruçam para entender o que motiva cada indivíduo a participar de uma experiência como essa ou em ambientes análogos, em nichos tão inóspitos, quase alienígenas. Existiria um perfil de personalidade mais inclinado a se colocar em risco diante tantos perigos inerentes à jornada? Em vertente crescente de pensamento, advogam alguns cientistas que sim:  existe uma característica de “abertura a experiências” mais acentuada, talvez, também, de maior impulsividade.

É amplamente discutido como o ambiente ICE (de isolamento, confinamento e extremo) repercute nas emoções, nos comportamentos e na cognição humana. Podemos realizar avaliações objetivas com indicadores fisiológicos, como o nível de Vitamina D no organismo em interação com a baixa ou alta luminosidade da emissão solar e relacionar com respostas a testes psicométricos para inferências. Além disso, é sempre recomendável observar e comparar pessoas, grupos e até momentos específicos e os críticos de uma expedição polar para entender de que maneira podemos encontrar mecanismos mais eficazes para realizarmos as atividades requeridas, prevenir ou evitar os eventos indesejáveis que possam obrigar uma evacuação e os custos desta envolvidos. Todo esse arcabouço se vale de um controle maior de variáveis e permite estudos quase experimentais, tão complicados de serem realizados no campo da psicologia, e tendem a contribuir com situações diversas, a exemplo de meios de enfrentamento de situações de pandemias, como a da recente COVID-19, que também implicam  isolamento e confinamento, em certa medida. 

Embora a maior parte dos projetos de pesquisa no passado e atuais tenham o foco nas consequências negativas para o homo sapiens, desde a chamada Era Heroica de exploração, quando os primeiros desbravadores das porções de terra mais austral perceberam a incidência maior de melancolia e até agressividade entre os seus, há também um direcionamento para o entendimento e a exploração de aspectos positivos resultantes das missões. Existe uma maior probabilidade de surgimento ou agravamento de doenças psicológicas, como depressão, ansiedade e estresse nas pessoas, também o decaimento da memória ou da atenção, que pode aumentar as chances de erros humanos e, logo, de acidentes. Por outro lado, ademais à necessidade de prontidão 24 horas daqueles que devem suprir as urgências humanas com restrições consideráveis, inclusive sociais, pode-se notar uma satisfação e até o sentimento de honra exacerbados que permitem à maioria desejar retornar.

Aqueles que completam sua missão na Antártica, geralmente, afirmam que se transformam positivamente – como Psiquê ou as borboletas –, pois existe a beleza inegável diante dos olhos, o privilégio de estar onde poucos já foram e que possui uma grandiosidade exuberante de fauna e flora, fora o que os nossos órgãos de captação de sentido não conseguem registrar. Seria a alma do lugar? 

O desconforto é significativo, os objetivos de cada missão polar nem sempre podem ser alcançados, forçando ajustes de última hora e muitos planos B, C, D... para obtenção de dados parciais daqueles almejados, mesmo assim continuam voltando os expedicionários e essa psique é o que nos difere de outros animais. Temos o nosso córtex pré-frontal nos avisando sobre a iminência de desfechos até mortais nesses locais, mas, não fosse o ímpeto de ir mais longe, não teríamos jamais conquistado todos os continentes da Terra, inclusive aquele mais gelado e o único sem populações humanas nativas. Também não teríamos inventado e aperfeiçoado meios de locomoção, tornando mais rápidas e seguras as travessias assustadoras e vencendo os monstros da nossa mente a cada tentativa ou intenção. 

Pisamos no solo lunar e, também, com os produtos do nosso intelecto, tocamos Marte, ultrapassamos os limites reconhecidos do nosso sistema solar com a Voyager, que fez Carl Sagan escrever sobre o pálido ponto azul. Todos esses lugares são chamados polares, pela característica polarizada, extrema, que possuem, e normalmente se valem de experiências na Antártica ou no Ártico para progredir nos cuidados de saúde e segurança dos atores envolvidos. Talvez tenham alma, ou uma singularidade que extrapola a linguagem e garante que qualquer um, em qualquer idioma, enraíze em suas psiques o sentido abstrato de experimentar, algo intrínseco a todos os cientistas. E não somos todos? 

O limiar entre o arriscar-se e ter cautela nos impulsiona com o combustível ideal para sermos mais conscientes e responsáveis. Contextos polares, como o da Antártica, oferecem o conteúdo que nenhuma simulação consegue atingir, com o problema das mudanças climáticas, que ganhou visibilidade diante dos resultados de pesquisas polares, atingindo a todos que pensam e sentem. Precisam fazer sua parte e assim garantir que novos seres dotados de psique também tenham sua chance de questionar sobre a alma do planeta, dos lugares e de todos nós.

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Paola Barros Delben
Paola Barros Delben
Psicóloga, professora, escritora, pesquisadora polar e cofundadora da startup Polar Sapiens.
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Paola Barros Delben
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